segunda-feira, 3 de junho de 2019

A PRINCESA DESCONHECIDA


Retrato de uma Princesa Desconhecida
(Sophia, 1947)
Olho-a e flutua esta “Princesa Desconhecida”! Flutua “solitária, exilada, sem destino” (Sophia, 1947), quiçá inconsciente do sofrimento humano. O poder da sua figuração convoca um ideal e capta uma realidade. Há uma mensagem simbólica preservadora dos sintomas do estético. Densidade e plenitude sintáticas e semânticas suspendem a dicotomia tirânica entre o cognitivo e o emotivo. A percepção, a conjectura e a investigação factual não impedem o prazer ou a dor, a satisfação ou o desapontamento. Akóma kalá (ακόμα καλά)!
Sophia, aliando a estesia anafórica à agressividade lexical e à tripla adjectivação, cria a grandiosa metáfora denunciadora de iniquidades – “um imenso desperdiçar de gente” (Sofia, 1947) – em prol de débeis frivolidades.
Afonso Pinhão Ferreira meditou – sei que o fez – e deu ao bronze a sua leitura. Duas linguagens num só desígnio. Eis a Princesa belíssima, altiva, arrogante e indiferente, sopeando “grossas mãos pacientes” (Sofia, 1947). Eis a Princesa élfica, luminosa, solar que, porque descoroada e nua, reclama a condição humana, negando, claramente, qualquer probabilidade mitológica.
A rudeza dos grilhões e correntes colide com a perfeição esfíngica. Dessa colisão decorre a denuncia de questões sociais e a avocação de atitudes críticas. Não há qualquer camuflagem nem aproximação ao realismo socialista, antes uma preocupação formal denunciadora de arbitrariedades. Nas mãos, a simbólica do esforço, do sacrifício, da agrura, tal como outrora a insinuara uma certa estética neo-realista. Depois, cabe ao níveo esporão / mundo libertar a mensagem de Sophia: “Para que” (Sofia 1947), para quem, porquê? Barro, gesso e bronze, em conciliábulo, trocaram cúmplices e cortêses oaristos. O artista almou-os.    
Afasto-me, volto a olhar, um olhar contemplativo leva-me a pensar a arte enquanto elemento salvífico. Metamorfoses. Porque "O primeiro tema da reflexão é a justiça" (Sophia, 1972), passado "o tempo de mascarada e de mentira" (Sophia, 1962), os grilhões, placidamente abertos, são espada hercúlea e a coroa metamorfoseia-se em isonómica balança. Descalça, olhos abertos, liberta de roupagens, a Princesa, demandando os córregos da verdade, incomoda e questiona consciências. Diké (Δίκη) atalaia, porque "a busca da justiça continua" (Sophia, 1972). A coroa é brasão da liberdade pois, abandonando o exílio, a Princesa, pés-na-chão, reclama, “de mãos dadas com os perigos” (Sophia, 1958), o veio da fraternidade. As mãos são agora as de Antígona. A polissemia da obra de arte erige a chama da esperança e credita o Homem, justamente pela mão do artista, deste Artista.
Isabel Ponce de Leão
(artigo publicado no jornal AS ARTES ENTRE AS LETRAS, maio 2019)